A história
de um povo pode ser reconhecida de formas muito diversas e não tem a
ver somente com a leitura de antigos livros e documentos empoeirados. O
passado está presente nos locais mais incríveis de nosso cotidiano e não
é preciso muito para reconhecer isso. Uma das maiores provas dessa
afirmação está na cozinha, nos pratos que consumimos diariamente. O ato
de comer não envolve uma simples questão de sobrevivência, mas também
revela nossa história e um amplo conjunto de experiências vividas por
nossos antepassados.
A feijoada é um exemplo bastante
interessante disso, sendo rotineiramente consumida em diversas regiões
do país e bastante identificada como um dos pratos que ainda definem a
culinária brasileira. Para muitos, a feijoada é um prato que mostra uma
parte dos desafios que os escravos enfrentavam para sobreviver. Afinal
de contas, tendo sua força de trabalho
explorada, teriam que buscar formas diversas para arranjar uma dieta
que fosse capaz de recuperar sua condição física após uma desgastante
rotina de trabalho.
É a partir dessa situação que muitos
explicam a feijoada como uma estratégia de sobrevivência das populações
negras do período escravocrata. Segundo essa tese, os donos de escravos
consumiam carne de porco e descartavam os restos que consideravam de
menor qualidade. Foi daí que, para incrementar sua própria dieta, os
escravos recolhiam essas partes “ruins” para fazerem um cozido com as
sobras do porco, feijão e alguns outros legumes que tivessem à
disposição. Nascia então, desse modo, a deliciosa feijoada que hoje
consumimos em vários lugares do país.
Contudo, existem outras questões que
devem ser consideradas antes de falarmos que a feijoada é um simples
ato criativo dos escravos. Em primeiro lugar, devemos considerar que o
acesso à carne era algo nada simples em tempos coloniais. O consumo de
carne fresca era restrito às famílias
que tinham condições de criar ou adquirir animais próprios para o
consumo. Desse modo, seria minimamente estranho que esses privilegiados
se dessem ao luxo de desperdiçar algumas partes do animal que ainda
garantissem uma mesa farta.
Ao mesmo tempo, devemos lembrar que essa
combinação de carnes e legumes cozidos já existia na Europa. Já nos
tempos do Império Romano temos relatos de que os povos latinos
realizavam esse tipo de mistura para organizar suas refeições. Entre os
franceses, o famoso cassoulet, composto por feijão e diferentes tipos de
carne, é um evidente amigo da feijoada brasileira. Além desses
exemplos, podemos citar que os espanhóis também, desde o começo da Idade
Moderna, consumiam carne cozida junto com “fabas”, uma espécie de
feijão branco.
De tal modo, podemos muito bem supor
que a invenção da feijoada pode ter sido uma criação bem mais complexa
do que a história que estamos acostumados a tomar como verdade. No
processo de exploração da força de trabalho dos negros, devemos lembrar
que os escravos domésticos acabavam incorporando tradições da culinária
europeia dos seus proprietários. Sendo assim, a feijoada brasileira foi
uma clara invenção que revela o diverso encontro de povos que origina a cultura e a mesa do nosso país.
Por Rainer Gonçalves Sousa
Fonte: R7
Nenhum comentário:
Postar um comentário